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O Jornal da Minha Rua

História, Património & Natureza

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O quintal

 

A Nazaré foi em tempos uma terra de ruas estreitas, de quintais e becos pejados de vida. Dir-se-ia que havia, realmente, uma comunidade fervilhante que agitava a vila.

Era indiferente onde se vivia: encontrávamos sempre alguém que conhecíamos ou que nos conhecia. Ouviam-se os nomes, os gritos, o bater à porta da vizinha ou da família, os passos. Toda a vila era vida. Isso mesmo, vida que se via e se vivia.

Do norte ao sul — e o sul não era muito longe — tudo convergia para a praia. Já para o mar, só os que tinham como profissão a pesca. Os outros, miúdos e mulheres, ficavam em terra.

Nessa altura, quando os barcos iam ao mar, os barulhos das ruas, dos quintais e dos becos eram menores. Faltava o som melancólico do pescador: compassado, por vezes pesado, mas sempre firme.

Elas e eles, todos, permitiam que a palavra solidão estivesse erradicada do conhecimento dos nazarenos. Que existia, sabemos que sim, mas não se aplicava a esta pequena e laboriosa terra de pescadores, que junto ao mar nasceu e que junto ao mar, desvaneceu.

A Praia, o Sítio e a Pederneira eram, por isso, três locais diferentes, com as mesmas ruas estreitas, mas de geometria diferenciada.

A Pederneira convergia para os dois largos que ainda possui, talvez já não tão espaçosos; o Largo Bastião Fernandes e o Largo da Misericórdia.
O Sítio convergia para o Terreiro que acolhe a Ermida da Memória, o Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, o Palácio Real, o Hospital e o famoso e inquietante Bico da Memória, localmente chamado “picarol”.
A Praia, como referimos, convergia para a praia, fronteira entre a segurança e a incerteza.

Existiam locais preferidos pelos pescadores, mas mesmo esses eram ligados ao mar, marcados pelo tempo. Destaco, por isso, a fachada sul e poente da Capitania e do Mar Bravo. Junte-se a estes locais as esquinas que marcam o fim de todas as ruas, de norte a sul, desta terra à beira-mar plantada.

Não quero dizer que já não existam as ruas, sobreviventes de um urbanismo calculado, mas estão diferentes, caladas, sozinhas, abandonadas da vida que outrora lhes dava sentido.

Quanto aos becos e aos quintais, por uma razão ou por outra, alguns sobreviveram ao mau planeamento urbanístico. E o problema é que já não há forma de retroceder.

O que foi, faz parte do passado. O presente é o que temos no momento e o futuro, como se costuma dizer, “só Deus sabe”.

Religiões à parte, nessas ruas, becos e quintais viviam pessoas, muitas. Tantas quantas as viu nascer essa terra outrora de pescadores.

E, no entanto, apesar de tudo ter mudado, ainda se pressente, em certos recantos, a alma da Nazaré antiga. Um eco das vozes que já não se ouvem, um rumor de passos que já não se cruzam. É como se as pedras guardassem memória, e os becos e quintais, mesmo desertos, contassem histórias de quem ali viveu, trabalhou, sofreu e também sonhou.

A modernidade trouxe outras gentes, outros hábitos, outros modos de vida. A vila cresceu, abriu-se ao mundo e tornou-se ponto de encontro de viajantes oriundos das quatro parte do planeta, fascinados pelo mar e pelas ondas que agora a celebrizam. Mas para os que a conhecem de raiz, a Nazaré é mais do que o gigantismo do mar: é feita de silêncios, de tradições e de lembranças que teimam em não desaparecer.

Talvez seja essa a sua maior força, a capacidade de permanecer, mesmo transformada, como lugar de memória e identidade. Porque a Nazaré não é apenas geografia, é também uma forma de estar, um modo de ser que o tempo ainda não conseguiu apagar.

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